PERFIL – Bem vindo à aldeia

Um universo fora da cidade, reservado aos ciganos, sua cultura e excentricidades

por Maria Fernanda Teixeira

Estão escondidos por cada canto do mundo, são nômades, dispersos ou ciganos.  Nas cidades também se espalham, em pequenas vilas que reúnem bandos pequenos. Na Alemanha não passam de 70 mil pessoas, na Romênia são cerca de três milhões, já na Sérvia totalizam 700 mil.

Na capital dessa última, Belgrado, costumam se estabelecer ao lado das grandes avenidas, em que a passagem de automóveis não é mais do que um metro das casas mais próximas. Em alguns casos pode-se andar bem perto e não percebê-los, pois estão escondidos debaixo dos artefatos urbanos construídos pelo homem: grandes pontes, passarelas e edifícios. No pior dos casos é preciso atravessar uma grande avenida e se distanciar da multidão de carros. O vilarejo na região da Velha Belgrado, que reúne cerca de 180 pessoas, só é encontrado depois passar por um caminho de mato fechado, andar uns 60 metros na beira de uma rodovia e dobrar uma curva, onde menos se espera, em meio ao monte de entulho de pneus velhos e demolições, num inesperado e estreito caminho começam a aparecer as primeiras casas.

“As unhas das meninas (…) eram pintadas, com um esmalte gasto de diferentes cores” (Foto: Tennilly Pessoa)

A maioria feita de sobras, tão improvisadas que é difícil perceber que são casas. Os portões são chapas de metal batido que não serviram pra outra coisa, dentro deles quase sempre um cachorro protetor.  O chão é difícil descrever, mas facílimo de lembrar. Não era cimento nem terra batida. Poderia ser feito de pólvora por causa da cor, um marrom acinzentado, uma espécie de chumbo escurecido. Mas se fosse com certeza teria explodido abaixo do sol que ardia a mais de 40ºC. Também não era piche muito menos terra roxa, mais parecia uma areia fininha e escura, algo sem liga. Tão dissociável como os bandos ciganos que se dispersam sem demora. Um vento e todos ficariam cegos, algo que não aconteceu, porque não existia vento nenhum.

No meio daquela aglomeração de poeira era possível ver uma água fina que escorria, e formava uma rede de veias por onde passava. Com ela levava o cheiro de poeira misturado com algo em putrefação. Aquela água passava por debaixo dos portões das casas. Vinha, na melhor das hipóteses, da piscina improvisada para refrescar as crianças, mas podia ser também do lixo doméstico, ou da água do banheiro. No meio dos corredores de entulho onde as casas eram fincadas era difícil imaginar que não fossem parar naquela água corpulenta.

A miséria que envolve o lugar desde o caminho até o interior das casas é explicada pela quantia média de três euros diários por pessoa, com a qual sobrevivem os ciganos da região da península balcânica. Cada vila agrega uma média de 30 famílias, com cerca de quatro crianças.

Das casas as crianças aparecem pouco a pouco, uma encontra a outra, cantam e brincam juntas. Correm pelo lixo, sobrem nos entulhos, conhecem o lugar. Não o acham cinza e assustador, mas sim uma grande aventura. Os pais olham de vesgueio da janela ou no portão. Quantos pensamentos não lhes passam na cabeça quando vêm a cria se afastando e falando com outras pessoas. Que experiências que tiveram não fariam de tudo para evitar que o filho passasse. Vai que ao sair na rua ouvisse de alguém que são “Ladrões, folgados”, críticas comuns à sua raça. Ou então ver alguém falar que moram onde moram e vivem nas condições que vivem porque são acomodados. Mas os pais não fazem nada, só observam de longe.

O vilarejo se parece com as favelas brasileiras, e as crianças ciganas lembram as brasileiras carentes. Aproveitam um milésimo de segundo de atenção que recebem para não desgrudar mais do novo e fiel amigo. Uma a uma elas agarravam nas mãos de um ou de outro e depois não soltavam mais. Gostam de brincar e que brinquem com elas, assim como qualquer criança no mundo.

Um menino com menos de dois anos perambulava sozinho por entre os detritos deixados no chão, chegava até a gente com pés descalços e mãos imundas, às vezes carregando um dos entulhos que pra ele servia de brinquedo. Ao menorzinho do grupo chamavam “bêbe” sílabas fácies, reconhecíveis em qualquer língua.

E como ele os nem tão pequenos de cabelos desgrenhados alguns com tufos de poeira entre os fios, que grudam qualquer partícula que toque a superfície. De tão duros nem mudavam de posição. Os cortes sem ordem nenhuma, formavam uma seta, e tinham inúmeras camadas. Lembram os mullets dos hermanos argentinos e outros ícones da música sertaneja brasileira dos anos 80.

Claro que de todos aqueles, alguns compridos, outros bem curtos, alguns até bem limpos e sedosos, a minoria. Assim como os cuidados odontológicos não eram privilegio de muitos. Até nos menores, o lugar de dentes de leite brancos e cheios de vida era ocupado por alguns sorrizinhos com dentes escuros, à beira ou que até já haviam passado da morte. Em geral os meninos eram mal cuidados, com as unhas das mãos compridas e sujas. Também eram assim as unhas das meninas, com a diferença de que eram pintadas, com um esmalte gasto de diferentes cores. Os pés eram cheios de rachaduras, surrados assim como as roupas e calçados, que não acompanhavam o crescimento da criança. A pele queimada com raríssimas exceções de branquelos, de pais que provavelmente pularam a cerca da barreira cultural com o povo cigano.

Mas do semblante das crianças o que mais chamava a atenção eram os olhos. No primeiro contato pareciam intocados pelas interferências que já tinham sofrido pelo mundo, nos cabelos, unhas, mãos, pés, dentes, e aonde nem se podia enxergar. Os olhos pareciam intactos, apenas no primeiro momento. Porque depois de encarar por alguns segundos apresentavam-se destemidos, emoldurados pelo rosto penetrante era possível perceber a imensidão que havia por trás das íris, hora muito verde, hora castanho claro e às vezes até bem negras. Eles mostravam um possível futuro e um constante passado, decorrente dos poucos anos em terra ou da herança impregnada na história dos pais, e avós, bisavós…

“A pele queimada com raríssimas exceções” (Foto: Tennilly Pessoa)

Resultado da história dos povos ou não, os ciganinhos têm um grave problema de conciliação. Algumas discussões mal haviam começado e eles já estavam surrando um ao outro, pequenos com pequenos e mais velhos com mais velhos, ou com pequenos mesmo. Eles só resolvem problemas entre eles gritando e se espancando. Não muito diferente de seus familiares.

As famílias de lá se dividem em dois lados, pacificados por um acordo de tempo indeterminado. Uma fagulha de insulto que parta de um lado ao outro, mesmo que venha de uma criança, é capaz de causar uma rebelião com fim desastroso, já que nenhuma das famílias de nenhum lado seria conivente em deixar o lugar. A maioria das famílias está nessas condições de moradia há muito tempo.

Em abril de 2012 o governo de Belgrado tentou desmantelar mais de 250 famílias de diferentes povoados. Os moradores de casas de madeira seriam transferidos para regiões afastadas do centro da cidade e instalados dentro de containers metálicos. A Comissão Europeia de Anistia Internacional interrompeu o despejo, por considerá-lo contra os direitos da pessoa humana. Há boatos que a operação teria sido colocada em prática atendendo a pedidos de donos de Hoteis de luxo da cidade que diziam que as vilas atrapalhavam o visual de seus empreendimentos.

Não é difícil ouvir de europeus e asiáticos de diversas regiões como o povo roman os incomoda. Uma jovem ucraniana afirma com todas a letras que odeia a raça cigana e completa: “É bobagem ajudá-los, eles não mudam de vida porque não querem. São ladrões e folgados.” Outros acham que eles não têm oportunidade para melhorar sua condição social mas nem ao menos tentam buscá-la. Uma garota da República Tcheca entende que esse comodismo deve ser da cultura deles.

Aos poucos a parte da cultura bonita para os que não moram com os roman escapa das paredes do vilarejo alcança a rua e entra no ouvido dos exteriores ao ninho. Dizem que se o vento balança uma várias árvores isso se torna uma melodia para os ciganos, que se não tiverem vento podem tocar seus instrumentos a qualquer hora do dia ou da noite.

É por esse reconhecimento que hoje em dia na região dos Bálcãs as músicas populares de maior sucesso são dotadas de instrumentos como chocalhos, flautas e tambores comuns às musicas árabes, indianas e também ciganas (vide Jana “Barabar”).

Seja pelas características originais ou pelo senso comum disseminado sobre o povo ainda hoje existem vilas ciganas, com a cultura carregada desde o início dos tempos. Vivendo quase que intactos de quando montaram as primeiras vilas. Talvez seu nomadismo os tenha preservado espalhados, mesmo que em pequenos pontos, por todo o mundo. Sabe-se lá até quando teriam durado se tivessem se ocidentalizado.

Um comentário

  1. Excelente o texto, Maria! Muito boas observações… Deu pra perceber que você realmente absorveu bastante da sua experiência trabalhando com as crianças ciganas. Na minha opinião, os ciganos não são folgados nem acomodados, eles simplesmente já nascem sem perspectiva nenhuma de vida, num ambiente em que não têm oportunidades. Há poucos casos de ciganos que vão além e estudam, mas, somente pelo fato de serem ciganos, não conseguem empregos… Há muito preconceito. Fico com medo de um dia, devido à falta de políticas inclusivas, eles resolverem começar a roubar e matar como fazem os mais carentes do Brasil, que apelam para o crime para conseguirem seu sustento.
    PS: Gostei de ver as fotos da Tennilly!

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